Blues


Daqui a alguns anos você estará mais arrependido pelas coisas que não fez do que pelas que fez.
Então solte suas amarras.
Afaste-se do porto seguro.
Agarre o vento em suas velas.
Explore.
Sonhe.
Descubra.

Mark Twain

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

De gênio e Louco




Às quatro e quinze da tarde o relógio do Mais Que Sujo apitou. Era a milésima vez, sem tirar nem pôr. Pra um ser que já testemunhou uma vez o mundo acabar, aquela não seria exatamente uma novidade.
-Ei, sua barata idiota - Ouvi o Mais que Sujo xingar.Era estranho uma pessoa com um pingo de consciência se inclinar à cria de baratas, mas ele era um cientista. Perdera as posses em um monte de experimento falido, se tornara um mendicante, e agora morava num esgoto que não era saudável nem para mim.
-Ah, seu corpo pede por um banho - falei. Se querem saber eu não acho que tenha falado isso, porque baratas não falam. Mas para o Mais Que Sujo, depois que a loucura o pegara de jeito, até as fezes matinais que ele expelia pareciam dotadas de vozes.
-Talvez eu precise mesmo, sua barata idiota - respondeu. Ele devia ter mais respeito. Eu viveria. Ele não.
Mais que Sujo me deu as costas. Seu relógio continuava apitando.
-Que horas você disse que o mundo acabaria?
-Eu fiz previsões. Não sei ao certo.
-Que horas? - insisti.
Ele coçou algum ponto atrás da orelha. Um maço de cabelo seu caiu na água da rede de esgoto.
-Cinco e quinze da tarde.
-E o que vai fazer agora? Você só tem uma hora.
-"Nós" temos uma hora.
-Eu não sou um ser humano decadente que fala com baratas e com o próprio excremento.
Ele bufou. Eu o segui, meu corpinho ziguezagueando, minhas antenas balançando com morbidez.
-Aliás - murmurei. - Se você tiver mais uma hora de vida, nesse estado em que se encontra... você deverá agradecer pela sorte que teve.
-Ali - ele apontou para a escada enferrujada que levava a superfície.
-O quê? - Eu não acreditava. - Você só tem uma hora de vida. Agora menos que isso, inclusive. Quer gastar esse tempo na superfície? O que há na sua cabeça? Eu, com cérebro de barata, penso melhor que você...
-Você não pensa. Você nem fala.
-Está dizendo que sou uma alucinação, seu bocó?
-Eu estou louco e você é um fruto de minha loucura.
-Se você sabe que está louco, então você não é, de fato, um louco.
-E o que eu sou então, espertalhona?
-Alguém que precisa de um banho.
Ele riu. Colocou-me, sem aviso, no bolso. Reclamei e xinguei, mas ele me ignorou.Talvez só estivesse querendo reconhecer que não era louco, como eu lhe dissera, e que baratas não falavam. O problema era que o Mais Que Sujo era péssimo nessas coisas.
Ele subiu a escada enferrujada, afastou a tampa de esgoto e saiu para a superfície. O idiota nem cuidou de tornar a pôr a tampado esgoto no lugar.
-Pode me pôr no chão agora?
Não respondeu. Tirou-me do bolso, agachou-se e me pôs no asfalto. Ao redor tudo era um caos. Não havia muito além de gente gritando e uns zé-ruelas correndo pelados, num brado que não cessava: "Está tudo no fim, tudo chegou ao fim".
Na rodovia o trânsito enlouquecera. Os carros tomavam a contramão, seguiam por lugares inusitados, só para depois retornarem ao mesmo ponto. Queriam fugir, mas não sabiam exatamente pra onde.
O restante do pessoal me parecia mais doido e descabelado que o Mais Que Sujo. Este enfim pareceu ter percebido que não era louco ao ver aquelas pessoas correndo pra lá e pra cá como baratas afugentadas pelo inseticida. Vi-as entrando em pânico, estapeando umas as outras, estuprando velhinhas e falando palavrões.
A raça humana era ignóbil.
-Mais Que Sujo! - gritei pelo meu amigo. Ele se afastava em passos rápidos.
-Aonde você vai?
-Fazer o que disse para eu fazer.
-Ahn?
Segui ele. Mais Que Sujo chegou a uma casa bonita (bonita no conceito de uma barata, é claro) e entrou nela como se fosse sua. Uma dona de casa lá dentro gritou, apanhou uma vassoura e veio para cima do Mais Que Sujo. Ele apenas ergueu as mãos em um gesto de rendição.
-Por favor, senhora... eu só preciso de um banho.
Ela mudou de expressão só de ouvi-lo falar. Aquiesceu, relutante, e abaixou sua arma mortal. Uma vassoura era um dos perigos para insetos do meu tamanho.
-Achei que fosse mais um maluco desses que estão nas ruas...
-Acha que eles não têm razão?
-Sim, não têm. Acredito que estão fazendo estardalhaço demais. Que, ao invés disso deveriam apenas aproveitar o que lhes resta da vida.
-Você aproveitou, senhora?
-Não me chame de senhora. Quero me sentir mais nova pelo menos em meus últimos minutos...
-Claro, claro. Velhas são as estradas, não é mesmo?
-Sim. - Ela olhou com piedade para o Mais Que Sujo. - Vá tomar seu banho. Eu lhe cedo uma toalha, sabonete... você precisa muito de um banho.
Que bom que ela concordava comigo.
-Você não respondeu minha pergunta. - disse ele, ao chegar a porta do banheiro. Sua aparência era deplorável e seu cheiro pior ainda.
A mulher apoiou-se na parede.
-Eu tive um esposo. Morreu. Tive dois filhos. O primeiro morreu num acidente de carro, o segundo nasceu com uma deformação nas costelas. Este ainda está vivo. Coloquei-o para dormir agora há pouco, e espero que não acorde mais hoje. Minha vida foi estranha... mas teve seus momentos bons. Sofri muito, mas também me alegrei.
Sábias palavras.
- E agora não vai fazer mais nada em seus últimos momentos de vida?
- Sim - Ela respondeu. - Vou esperar.
- Acredita em Deus?
- Acredito. Piamente.
- Eu... acho melhor ir tomar logo meu banho.
Ele desapareceu atrás da porta do banheiro, fechou a porta. Eu corri para debaixo do sofá antes que a dona-de-casa resolvesse me acertar por instinto. Seria estranho eu sobreviver ao fim do mundo, e morrer através de uma vassoura.
Quando o Mais Que Sujo saiu do banheiro ele era o Razoavelmente Limpo. A dona-de-casa deu-lhe roupas que pertencera ao marido falecido dela, e ele as vestiu. Ficaram folgadas, mas ele não reclamou. Alguém que sabe que logo menos morrerá não se preocupa em formular muitas reclamações.
- Quer mais alguma coisa? - perguntou a mulher.
- Queria comida.
Então ele comeu. A mulher lhe proporcionou uma boa refeição e ele pôs tudo goela abaixo. Tomou um suco qualquer e ainda se esbanjou com uma sobremesa qualquer. Ao terminar, o Razoavelmente Limpo agradeceu, deu um abraço apertado na mulher.
Antes que eles se separassem tudo começou.
O teto da casa desabou, a tevê saiu do ar, gritos se avolumaram nas ruas. Não ouvimos sinal da criança que fora posta para dormir. Talvez o fim a tenha pego durante o sono, o que seria mais favorável para ela. A dona de casa ficou imóvel, à espera, e o meu amigo a imitou. Nenhum dos dois se desesperaram.
A última lembrança que tive do Razoavelmente Limpo fora de seu sorriso amarelo, mas farto. Do corpo menos fedorento. Morrera de barriga cheia e de banho tomado. Morrera com bem mais tranquilidade e sensação de realização pessoal do que muitos dos desesperados que vimos nas ruas. Naquele momento ele não era um louco. Sem sombra de dúvida, ele fora a pessoa mais sã que a loucura já chegou a tocar.

Um comentário:

  1. e um bom conto cara esta de parabéns velho, por divulgar né de fato ai a vida do Luan santana né depôs dos 50 anos cara, isso o mundo já havia seguido adiante foi um fato ocorrido depois do apocalipse, e vê como o cara ficou! mesmo assim deveria se considerar com muita sorte das fãs terem morrido no Armagedom e não ter visto ele dessa forma de ( Splice ) cara a nova especie do mundo velho!

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